terça-feira, 27 de setembro de 2016

Então seguimos!




Continuemos a partir daqui a tentar explicar um pouco a trajetória de nosso povo através da dança. Recapitulando que saímos da Índia, aqui já tendo sido mencionadas as danças de origem indiana  que ainda são praticadas na região, banjara, kalbelia e tera taal.

Sigamos então com nossa longa caminhada através do mundo e da dança cigana. Entretanto, para entendermos melhor este processo de 'mesclagens' que a dança cigana passa a sofrer, necessitamos conhecer alguns conceitos mais aprofundados acerca do estudo acadêmico da dança,que nos ajudam a perceber e entender o motivo de nossa dança conservar a mesma raiz, independente do estilo ou local onde for praticada.

Vamos ao primeiro conceito que é o de Memória Corporal Afetiva. Tive contato com este conceito quando na faculdade, trazido a mim por sua idealizadora, a pesquisadora-bailarina-intérprete Rosângela Colares. O conceito é bastante simples de ser entendido e absorvido, nos trazendo à reflexão que cada ser humano traz suas memórias em seu corpo, mesmo que inconscientemente. Vamos entender melhor...


                                                                   





Desde o momento de nossa concepção, ainda no ventre materno, sentimos e assimilamos todo o mundo exterior. Vozes, sons, e, até mesmo, movimentos. Imagine então, uma mãe cigana que canta suas canções tradicionais típicas, recebe todo o cuidado que uma cigana recebe em seu período gestacional e, é claro, dança alegremente nas festividades das quais participa. O feto, no interior do ventre de sua mãe ouvirá e sentirá tudo o que se passa lá fora através dos hormônios e sensações transmitidas por sua mãe. Seu pequeno corpo, sua pequena mente guardarão aquelas sensações para que, simplesmente, recorde das mesmas quando for estimulado em seu cotidiano. Assim acabamos por ouvir que  a criança tem o jeito de dançar da mãe, do pai, da tia, do avô, etc, que se mescla a sua personalidade ganhando novas formas. Ao longo de sua vida, a criança permanecerá em contato, cada vez mais direto, com influências de seu círculo familiar, construindo-se assim o estilo de dança próprio de sua família, impregnado por sua memória corporal afetiva.


                                   
 



O segundo conceito é o de Empatia Muscular. Apresentado a mim por Márcia Dib, através de Nilza Leão. Empatia, segundo o dicionário, é a capacidade emocional de compreender um objeto, ou ainda, a capacidade de projetar a personalidade de alguém em um objeto, de forma que este pareça impregnado por ela. Pode ser ainda a capacidade de sentir o que o outro sentiria. Neste caso, nos prenderemos à personalidade projetada em um objeto. Agora vamos entender...



                                



O conceito de empatia muscular está presente em pessoas, animais e paisagens. Retornando à infância, desde pássaros a seres humanos absorvem as sensações do meio em que vivem, adaptando suas necessidades ao seu corpo. Vamos pegar o exemplo do pássaro... O pássaro necessita voar, quanto mais alto o seu ninho, quanto mais dificultoso for o seu local de acesso, melhor e mais firme será seu voo. Isto acontece pelo fato de sua musculatura perceber, através do constante exercício, a força e o movimento necessário para que ele possa voar com segurança. Logo, um canário jamais voará como uma águia careca americana, pois as influências que cada um recebeu e desenvolveu em sua musculatura são completamente diferentes. Cada um traduziu para o seu corpo as necessidades do meio em que vive. Isto é empatia muscular.


                                       




Agora vamos traduzir isto para a dança. 



                               



 Vamos observar um pouco o cotidiano das ghawazee e de outras ciganas nômades que precisam buscar água em lugares distantes diariamente. Este processo, normalmente, começa ainda muito cedo, uma vez que uma mulher a mais, mesmo que criança, significa um jarro a mais, que por sua vez significa mais água para a tribo. Sua musculatura deverá se adaptar a vários fatores. A melhor maneira para se abaixar, a força necessária para puxar o jarro cheio de dentro da água, a força necessária para erguer o jarro cheio do precioso líquido sem derramar uma única gota, o equilíbrio para manter o jarro no alto da cabeça, aliado à força muscular para suportar o peso, e, por fim, a resistência muscular do corpo todo para retornar ao acampamento com o jarro cheio de água no alto da cabeça. Ao longo de sua existência, seu corpo estará cada vez mais adaptado ao movimento cotidiano, traduzido por seu tônus muscular. Logo, uma dançarina que não possua este contato, dificilmente carregará um jarro, durante uma dança, da mesma maneira que uma beduína tradicional, pois o corpo da nômade e da bailarina possuem registros diferenciados em seus corpos. Posto assim, o ideal ao se praticar uma dança típica, seria tentar vivenciar um pouco do cotidiano tradicional. Não estou dizendo que vamos para o meio do deserto buscar água debaixo do sol escaldante para saber como é, longe disso, mas se for para apresentar algo típico, por exemplo com o jarro, podemos, pelo menos, ensaiar com o mesmo cheio de água, na tentativa de tornar o gestual da dança mais fiel o possível. Experimente, por exemplo, ensaiar um ghawazee em um terreno arenoso. A diferença para uma superfície lisa é gritante. A execução de certos passos torna-se até mais difícil.


                                                





Dias atrás, tive a oportunidade de estudar um pouco de dança cigana de estilo espanhol. Como já mencionado, sou de família moura, tendo como vivência comum, as danças originárias do Oriente Médio e Marrocos. Isto fez com que eu encontrasse sérias dificuldades corporais para endurecer meu gestual, pois a empatia muscular impregnada em meu corpo o fez acostumar-se ao gestual leve das mesmas, ao contrário do gestual hispânico. Entretanto, ao seguirmos para movimentos de busto, ombros e saias, a dificuldade desapareceu, uma vez que estes estão presentes em, basicamente, todos os estilos de dança cigana.

A partir destes dois conceitos entendemos, então, que nossos corpos e mentes, trazem impregnados um gestual próprio e comum, adaptando e traduzindo para nossa dança o gestual dos locais por onde passamos e isto faz com que, não importa de onde venha ou onde esteja, nossa dança seja reconhecida como dança cigana!



                                      



                                      






sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Os Ciganos e a Dança



Nossa relação com a dança e algo muito intimo e magico.Dançamos do nascimento ao luto. Dançamos para festejar e como uma forma de resistência,pois a dança também traz nossa historia,nossa identidade. Nossa dança e uma forma de preservação de nossa cultura,assim como nossa língua e nossas tradições familiares. Faz parte de nos.

Entretanto,engana-se quem pensa que todo cigano dança. Não! Nem todos dançam,nem todos cantam,nem todos leem a sorte e nem todos moram em tendas, e isso não faz de ninguém menos cigano ou mais cigano,pois o ser cigano vai muito alem disso.

Costumo dizer que ser cigano e que nem ser judeu. Temos línguas,costumes,identidades culturais e bandeira diferentes e os seguimos onde quer que estejamos. Sabemos o que somos e ponto.

Ate porque,muitos de nossos antepassados foram obrigados a esconder suas origens,fazendo com que muitos descendentes atuais,sequer sonhem que tem parentesco cigano. Este,somente identificável pelos sobrenomes tradicionais,como Ferreira, Costa, Nunes, Pinheiro, Campos, Oliveira, Santana,etc. 

Mas voltando a dança...rsrs. Como já expliquei no post anterior,nosso povo saiu da Índia e espalhou-se pelo mundo,passando e fixando-se por diversas regiões, adaptando-se a absorvendo os costumes dos locais por onde passou,mesclando-os a sua cultura original. Isto reflete-se nas roupas,língua,musica, culinária e,também,na dança.

Nossa dança possui,e claro, traços identificáveis em qualquer formato, seja ela turca,persa,romena,espanhola,balcânica ou brasileira. Isto fara com que,onde quer que se veja,esta seja reconhecida como dança cigana. 

kalbelia;cigana do Rajastão.



Cigana Calin em acampamento no Brasil.



Ao longo das postagens, todos poderão identificar estes traços,como movimentos das mãos, das saias, dos ombros,de giros,de quadris,etc. Me preocupo muito com o termo 'dança cigana' ou 'dança artística', pois não existe uma homogeneidade em nossa dança,apesar de semelhanças. Recordo-me de minha orientadora,uma antropóloga,no dia em que disse a ela que faria meu TCC sobre dança cigana,ao que esta me perguntou sobre qual dança cigana eu falaria...rsrs. Realmente, o termo dança cigana e algo muito abrangente, alem de nada especifico,o mais adequado seria falarmos danças ciganas dos balcãs,danças ciganas do leste europeu, danças ciganas de estilo turco,ou sendo ainda mais especifico, kalbelia(Rajastão
),manea (balcãs),karsilama(Turquia),kawlya(Iraque).

Então,pensando desta maneira,uma dança cigana artística seria,na verdade,uma adaptação artística de algum formato de dança cigana. Algo criado especialmente para o palco, para a cena artística. Nada contra, não estou criticando, mas,pela logica, e fazer exatamente o que se fez com a dança do ventre em Hollywood, criando-se o mito da dança dos sete véus. Em outras palavras, corre-se o risco da perda da identidade cigana na dança. Pensemos nisso!


Então,vamos começar pelo começo...rsrs. Vamos para a Índia,o berço do povo cigano,onde há vários formatos de dança cigana,formatos estes que seriam,segundo alguns historiadores, as origens de nossa dança.


Banjara



Banjara é uma palavra derivada do sânscrito, que significa "os que se movem na floresta", isto devido ao fato dos Banjara serem,historicamente, coletores de suprimentos nas florestas,como raízes, folhas e frutos. Os Banjara estão entre as castas mais baixas da Índia e são uma das muitas tribos ciganas que habitam o pais e são chamados de "os ciganos da Índia", assim como a casta dos Dombas.
A dança banjara dividi-se em tradicional e artística (para o palco
). Na dança tradicional não há a necessidade de musica,as ,mulheres dançam com o som de pequenos címbalos de metal, alem do som de suas pulseiras de osso e suas tornozeleiras de prata,que elas jamais tiram. As Banjaras,na verdade estão sempre prontas para dançar,sendo suas vestimentas tipicas,repletas de adereços,as vestimentas tipicas para a dança.


Na dança Banjara artística,ha toda uma contextualização musical que não ocorre na tradicional, assim como na tradicional ha uma grande variedade de adereços e cores,assim como na Banjara tradicional,entretanto,a tradicional e,na verdade,uma dança de cunho espiritual de exaltação ao amor e a beleza. No palco, a dança torna-se artística,seguindo portanto o ritmo musical de maneira precisa,podendo a dança inclusive ser executada por apenas uma dançarina. A presença das pulseiras de osso aqui não e tão frequente,porem as cores das vestimentas permanecem fieis,sendo a saia de algodão nas cores preta,vermelha e branca,bordada com pequenos pedaços de vidro (gage ha), juntamente a blusa (chole) e ao véu (rodni),que deve ser grande o suficiente para que o corpo permanece quase totalmente coberto durente a execução da dança.

A seguir,dois videos com execuções das danças Banjara tradicional e artística,em sequencia. 



                                                        
                                     



                                        



                                              Kalbelia





Kalbelia ou Sapera,trata-se de um tipo de dança cigana originaria da Índia,mais precisamente do Rajhastão, região localizada no noroeste indiano. Kalbelia e o nome dado tanto a tribo quanto a dança praticada. Kalbelia,em sua tradução literal do sânscrito,significa "a que domina de preto",certamente pela predominância da cor preta em sua roupas. Sapera,do hindi,serpente. Estas duas alusões nos traduzem a magia e o domínio da dança kalbelia em uma dança que,em seus movimentos,transfigura os movimentos das serpentes. O serpenteado desta dança,vem da tradição desta tribo em coletar serpentes para a retirada e venda de seu veneno,fazendo com que o grupo se tornasse conhecido pelo encantamento das serpentes.


                                       





Todos os movimentos e adereçagem pertinentes a esta dança trazem alusão as serpentes. Movimentos de véu e cabeça,tornozeleiras,mudras (símbolos sagrados feitos nas mãos),tramas das roupas e movimentos corporais,traduzem a historia deste grupo de ciganos,sendo o auge de sua execução o movimento conhecido como "Os Olhos da Serpente",onde a dançarina enverga-se para traz em um "super" cambret,pegando,com seus olhos, moedas no chão, assemelhando-se assim seus olhos aos da serpente.



Hoje, os homens da tribo sobrevivem capturando serpentes que entram em algumas casas,ganhando pouquíssimo dinheiro e as mulheres pedem esmolas e executam suas danças nas ruas.

Abaixo,um vídeo extraído do Asian Music Circuit ( Circuito de Musicas da Asia), com dançarina e músicos de comunidade kalbelia tradicional.









                                    

                                             Tera Taal
                                              




Tera taal ou Teratali e uma dança praticada por ciganos de uma tribo chamada Kamada,de encantadores de serpentes,na região do Rajhastão,por vezes confundida com a dança Bhavai,uma dança tradicional da mesma região,que consiste em seu executor equilibrar o maior numero possível de potenciômetros (um tipo de vasos de cerâmica pintada),enquanto dança sobre vidro. O termo significa 13 batidas, sendo a dança originalmente utilizada tanto para entretenimento de turistas quanto para devoção nos templos dedicados a Baba Rumdev, no templo de Runesha.


A dança Tera taal é executada com a utilização dos Mangiras ( o mais antigo instrumento utilizado na Índia,que consiste em pequenos címbalos de metal presos ao corpo por fios de couro ou cobre), presos aos braços e pernas. Na dança as mulheres giram seus corpos em movimentos rítmicos rápidos e precisos e por vezes,acrescentam facas ou espadas presas na boca,como um elemento de risco na dança. 

Hoje em dia,esta dança e praticada,quase que exclusivamente,para fins artísticos,como atração turística.