terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Baxtalo nevo bers!

Baxtalo Nevo Bersh !



Como  em muitas tradições, o natal e o ano novo são datas muito importantes e especiais, também para nós os ciganos. Mesmo que tardiamente, venho aqui desejar meus fraternos votos de baxtalo krekuno thaj bartalo nevo bersh savenge tumenge !

Por ainda encontrar-me em período de Pomana ( luto ), por minha estimada mãe, que Deus a tenha, optei por não comemorar tais datas, mantendo-me reclusa, tal qual pedem nossas tradições referentes a este período. No entanto, conheço e recordo-me bem a alegria e todas as festividades destas datas.

                                                 




Como boa romi, cresci em meio a todas as nossas latentes tradições ditadas pelo Kris. Logo, não aguardava pelo tão comum Papai Noel. Nossa árvore de natal não era sintética, nem possuía bolas coloridas ou enfeites de plástico, nosso grande e frondoso pinheiro natural, devidamente cuidado ao longo de todo o ano, recebia enfeites como bombons, frutas, estrelas, folhas de louro e toda a sorte de elementos naturais pertencentes ao nosso misticismo próprio. Velas são muito comuns, bem como incensos de canela e cravo perfumando o ambiente. Flores e pinhas também são bem vindas. 




Especificamente em minha família, possuímos tradições provenientes do Marrocos que foram trazidas por nossos mais velhos, sendo transmitidas e respeitadas por cada membro que nascia. Isto fez com que o natal não fosse algo de destaque, não havendo, inclusive a presença da figura do Papai Noel, como já mencionado. Sabíamos que receberíamos presentes por nossas próprias tradições que eram trocados ao nascer do dia, para que cada um agradecesse ao outro por tudo o que fora dado de bom, além de ser um pedido de perdão por qualquer mal entendido ao longo do ciclo passado. Na verdade, o presente era mais uma confraternização do que uma troca de presentes propriamente dita.




No ano novo, nossa mesa sempre foi farta, com carneiro, aves, frutos, lentilhas, kibes, tabule, pastas e toda a sorte de comidas que simbolicamente trariam boa sorte e prosperidade no ano vindouro. Cada fruta com seu devido significado. Lentilhas trariam dinheiro, assim como as uvas, morangos e maçãs trariam amor e forças para magia, pêras trariam o sabor doce até o pós vida, e , claro, jamais poderia faltar o kolakô ( pão com frutas ) em qualquer das duas ocasiões, para ser molhado no vinho em memória de kristesko ( Cristo ) em sua santa ceia. 




A festa de ano no sempre deveria alcançar as primeiras horas do dia primeiro, para que este pudesse ser saudado em toda a sua glória, com pedidos de sorte, saúde, paz e prosperidade por todos, sempre regada a muita música e comida. Aqueles que porventura adormecessem, deveriam ser acordados aos primeiros raios da aurora para receber o novo ano que chegara. E assim, comemoravam-se passagens de natal e ano. E assim, muitos de nós o fazem até hoje. 




Com estas doces lembranças desejo a todos que o ano de 2017 seja repleto de paz, amor, harmonia e prosperidade à todos! Baxtaló !


terça-feira, 11 de outubro de 2016

   A Relação entre Santa Sara Kali e Nossa Senhora da Conceição de Aparecida.


Santa Sara Kali


É do conhecimento de todos os apreciadores da cultura cigana, a devoção de nosso povo por Santa Sara Kali, a idolatrada imagem negra cuja imagem  localiza-se na cripta da pequena igreja de Saint-Michel na cidade francesa de Saint - Maries -  de  - La - Mer. Porém, nem todos conhecem a relação dos ciganos brasileiros, principalmente calons, com Nossa Senhora Aparecida, a padroeira católica do Brasil. 


                                  
Nossa Senhora Aparecida


É muito comum encontrarmos nos acampamentos calons uma imagem da padroeira brasileira, sendo esta venerada, comemorada e respeitada, tanto quanto a tradicional imagem de Santa Sara Kali. Aliás, já estive presente em acampamentos em que se fazia presente a imagem católica de Nossa Senhora Aparecida, porém, nada havia que lembrasse a tradicional imagem de Santa Sara Kali, a padroeira mundial dos ciganos.

Durante esta semana de comemorações 

à Nossa Senhora Aparecida, falarei aqui de ambas, como singela homenagem, trazendo a desconhecida ainda por muitos, porém íntima, relação entre as duas.

Vamos, portanto, por ordem de culto, entender esta relação.

Primeiramente, Santa Sara Kali.  
                               



Assim como nossas saias, a história de nosso povo, nossa língua, etc, também a história do culto à Santa Sara Kali é composta por retalhos, que, por lógica e aceitação, construíram o que hoje aceitamos como história 'oficial'. Lembro aqui que busco elucidar sempre academicamente, sem é claro, esquecer minhas origens, logo, em termos acadêmicos, jamais poderemos mencionar histórias não documentadas como oficiais e sim como teóricas, daí o motivo do sinal de aspas.

Tal como tudo o que nos envolve, as origens de Santa Sara são complexas. Aqui, vamos entender, passo a passo e palavra por palavra, de onde viria Santa Sara Kali. 

De acordo com inúmeros relatos, inclusive familiares, o culto a Deusa Kali, ainda na Índia, teria acompanhado os ciganos em sua diáspora. Kali, do sânscrito, significa negra, palavra esta que, em nossos dialetos possui, exatamente, o mesmo significado e semântica. 

Kali ( literalmente 'A Negra'), é uma das Deusas mais respeitadas no panteão hindu, sendo considerada uma manifestação da Deusa Parvati, a esposa de Shiva, o Deus da criação, sendo Kali representada manchada de sangue, com cobras e um colar de crânios. 

                                 
Altar de Kali


Kali, segundo os Vedas, seria uma face de Shiva, em uma forma implacável ceifadora, simbolizando, assim, o interminável ciclo da vida. Sua imagem, normalmente possui pele negra ou escura, usando serpentes sobre o corpo ao invés de roupas, com um colar de crânios e de pé sobre o corpo de Shiva, representando a necessidade da morte para a renovação do ciclo da vida. Porém, Kali não é considerada uma Deusa má, mas sim a libertadora indispensável para os ciclos. Seus devotos são, acredita-se, recompensados com poderes paranormais como vidência, cura e domínio sobre serpentes, tendo uma morte livre de sofrimentos. Kali, apesar de sua aparência malvada, é considerada como uma mãe que alivia a dor e sofrimento nos ciclos reencarnatórios, dando também a vida.  Sua imagem é muito presente entre os ciganos kalbelia e demais tribos que professam o hinduísmo. Certamente, esta Deusa acompanhou o povo para sua proteção, como já mencionado.

Entendemos, a raiz hindu do culto à Santa. Vamos agora a seu primeiro nome, Sara.

Sara é um nome hebraico, historicamente associados a mulheres de destaque na sociedade hebreia, também traduzido como 'princesa' ou 'senhora'. Segundo alguns autores, incluindo Dan Brown, em suas obras como Holy Blood, Holy Grail e , mesmo no  famoso código Da Vinci, Sara seria, na verdade, a filha de Jesus e Maria Madalena, sendo ela o legado de Jesus, o Santo Graal que continha a cura, daí o motivo dos ciganos serem agraciados com poderes de cura. 

Lendas, contam em algumas versões que ela seria serva de Maria Madalena, estando desde a infância, sempre perto dela, outras que seria serva e parteira auxiliar de Maria, a mãe de Jesus, tendo. inclusive auxiliado em seu parto, fazendo com que ele tivesse carinho especial pela serva. E há ainda a mais contada, de que Sara seria uma escrava cigana de José de Arimatéia, o suposto tutor de Jesus no período em que passou recluso, a partir dos 13 anos. 

A lenda de Santa Sara Kali, nos conta que Sara, juntamente a Maria Jacobina, a irmã de Maria mãe de Jesus, Maria Salomé, mãe dos apóstolos Tiago e João, Marta, Lázaro e Maxíminio, após a crucificação, teriam sido lançados ao mar em uma barco sem remos ou provisões. A alternativa por jogá-los ao mar teria surgido por medo de matá-los diretamente, após os fenômenos ocorridos com a morte de Jesus. Desesperadas, as Marias puseram-se a chorar, Sara então retirou o véu que encobria seus cabelos ( mais uma pista sobre a descendência hebreia, uma vez que somente as hebreias cobriam a cabeça naquela região ), chamando por Kristesko ( Jesus Cristo ), prometendo que se todos se salvassem seria escrava de Jesus, jamais andando com a cabeça descoberta, em sinal de respeito. Milagrosamente, vencendo todas as adversidades, a barca sem rumo alcançou terra firme aportando com segurança em Petit-Rhône, hoje Saint-Maries-de-La-Mer ( Santas Marias do Mar ) . Sara teria cumprido sua promessa, mantendo sua cabeça coberta até o último de seus dias na terra, sua história de milagres a tornou padroeira dos ciganos, sendo festejada, geralmente, entre os dias 24 e 25 de Maio.

De acordo com o livro oráculo Lilá Romai, de Mirian Stanescon, provavelmente a tradição das mulheres ciganas casadas terem o dikló ( lenço ), como a peça mais importante de seu vestuário tradicional teria vindo daí. Sara é cultuada trazendo prosperidade, saúde e fertilidade, sendo muito comum sua ajuda às ciganas que não conseguem engravidar, que lhe agradecem sempre com um belo dikló. A imagem de Santa Sara, em Saint-Marie-de-La-Mer é cercada por incontáveis e lindos lenços de ciganas que cumpriram sua oferta pela graça alcançada.

Sara é considerada uma santa de culto local, pois jamais passou pelo processo de canonização oficial, está ligada ao culto às virgens negras da Idade Média. Não se conhece a razão exata que fez com que nosso povo a abracasse como padroeira, mas o fato é que Sara trouxe o cristianismo definitivamente para os ciganos. Sendo a figura mais amada e cultuada por todos.

Talvez o fato de possuir a tez escura ( kali ), associado ao manto azul ( a segundo cor da Deusa ), tenha contribuído para a ligação a deusa hindu, que, por sinal, está ligada a benefícios muito próximos, como fertilidade, vida e cura. O fato é que, invariavelmente,  Santa Sara Kali é uma santa cigana.



Até aí, entendemos um pouco sobre o culto à Santa Sara e suas origens, agora vamos até o Brasil em busca da relação de nosso povo com Nossa Senhora Aparecida.

                                 


Na imagem acima, temos a foto de um acampamento calon, onde ao fundo pode-se ver uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. 

Primeiramente, vamos a história dos ciganos no Brasil, seguido de um breviário a respeito do culto a Nossa Senhora Aparecida.

Vamos à entrada dos ciganos na península Ibérica, que resultou em sua expensão pelos territórios de França, Espanha, Itália, Alemanha, Portugal e sua consequente chegada ao Brasil. Não existe um consenso a respeito da entrada dos ciganos na península Ibérica, mais uma vez, o que temos são teorias de fontes incertas e de difícil acesso, entretanto teoricamente, há origens mais aceitáveis dados retalhos históricos encontrados em documentos datados de 1415. 

A primeira teoria diz que, estando ao norte da África, teriam atravessado o estreito de Gibraltar para se reencontrar na França, com a rota migratória do norte. Assim se dividiriam os ciganos do norte, entrando por Perpignan, os do sul ( tingitanos, provenientes da região do Tanger, que teria dado origem ao termo tsigani ), e os do leste ( grecianos ), tendo estes últimos penetrado pelo mediterrâneo, muito provavelmente devido
à queda de Constantinopla, por volta de 1480. A melhor documentação que se tem conhecimento é a respeito da entrada do norte, com um documento conservado datado de 1415, onde, nele, Alfonso o Magnânimo, concede salvo - conduto a um cigano chamado Tomás Sabba, a Santiago de Compostela. O mesmo monarca, concederia, em 1425, carta de passagem a outro chefe cigano, juntamente a seu povo, ordenando que fossem bem tratados. Abaixo, transcrição retirada de fontes acadêmicas.




Nesses anos, houveram inúmeros salvos - condutos concedidos à nobres chefes ciganos, e, segundo pesquisadoras como Teresa San Român e Helena Sânchez, desde o número de ciganos habitantes da península, a forma como se deslocavam seguindo sempre as mesmas rotas, o estreito laço familiar presente até hoje entre os ciganos ibéricos denotando que pertencem todos a uma mesma origem nuclear, bem como a estratégia de sobrevivência da época em apresentar - se como peregrino cristão ( mouros ou não ), estes indutos contribuíram para a firme amálgama cigana presente na cultura ibérica, que resultou na apropriação dos ciganos como patrimônio espanhol. 


                               




Ao final do século XVI iniciou - se o ciclo de intensas perseguições e os ciganos não puderam mais andar livremente, nem ter acordos com nobres influentes. Ao invés disso, aquele que possuíssem bens os teriam confiscados e os que não fossem mortos ou queimados eram massivamente vendidos como escravos, havendo anúncios de ciganos à venda livremente por toda a Europa.  Como no anúncio da época de ciganos à venda. O anúncio diz é datado de 8 de Maio de 1852 e anuncia a venda de 18 homens, 10 meninos, 7 mulheres e 3 meninas, todos em ' boas condições '.


                                

  

A chegada dos ciganos ao Brasil

Os primeiros ciganos a chegar no Brasil foram os do clã Calon, através de João Torres e sua família. Ao contrário dos ciganos de origem Rom, que chegaram ao Brasil dentro do contexto da Europa nos séculos XIX e XX, os calons vieram ainda no século XVI, banidos de Portugal. Isto está documentado por decreto assinado por Don Sebastião em seu conhecido alvará, declarando em 1574, o degredo do cigano João Torres e sua família inteira para o Brasil ( PIERONI, 2000 ). Durante todos os anos seguintes do Brasil colonial, centenas de ciganos foram deportados de Portugal para o solo brasileiro, sendo embarcados grupos inteiros a mando do rei Dom João V. 

O banimento não era o ponto final para a degradação, sendo os ciganos ainda proibidos de ostentar quaisquer traços referentes a sua identidade étnica, como vestuário, língua, sortilégios e, até mesmo, religiosidade. 

Os locais escolhidos pela coroa portuguesa para o degredo foram específicos, sendo eles, Ceará e Maranhão, em uma tentativa de que estes ocupassem áreas intensamente ocupadas por povos indígenas, longe dos centros culturais como Rio de Janeiro e Salvador. Vários estudiosos apontam que ciganos eram vistos como ' frutos de deportação indesejáveis ' , igualados aos piores tipo de criminosos banidos para a colônia. 


                                   

                             Escrava cigana



Nossa Senhora Aparecida



Nossa Senhora da Conceição de Aparecida, Nossa Senhora Aparecida das Águas ou, como é mais comumente chamada Nossa Senhora Aparecida, é a padroeira do Brasil, sendo a santa católica mais cultuada em todo o território nacional. A data oficial de culto, dentro do calendário brasileiro da - se no dia 12 de Outubro, ocasião em que fiéis do 
Brasil e do mundo inteiro vão em peregrinação até a cidade de Aparecida, onde localiza - se a basílica de mesmo nome da santa, em São Paulo. 

Existem duas fontes sobre o achado da imagem, encontrados no arquivo da cúria metropolitana de Aparecida, datando antes de 1743, e outro na Companhia de Jesus, em Roma, com histórias registradas pelos padres José Alves Vilela, em 1743 e João de Morais e Aguiar, datado de 1757. Amos encontram - se no Primeiro Livro de Tombo da Paróquia de Santo Antônio de Guaratinguetá.

Segundo a lenda, durante o início da segunda quinzena de Outubro, em uma passagem do Conde de Assumar por Guaratinguetá, rumo a Vila Rica, os moradores da região, movidos pela nobreza local, ofereceram uma festividade ao ilustre visitante, onde, mesmo sem ser época de peixes na região, os pescadores deveriam trazer peixes para o deguste do conde. 

Temerosos, os pescadores, Domingos Garcia, João Alves e Filipe Pedroso rezaram a Virgem Maria, a espera de que a santa pudesse operar um milagre. Após várias tentativas, acabaram por descer um pouco mais o rio, chegando ao porto Itaguaçu. Já quase desistentes, João Alves jogou a rede pela última vez, mas, desta vez, a rede não voltaria vazia. Em vez de peixes, na rede havia uma imagem de terracota da Virgem Maria, sem a cabeça. Ao lançar novamente a rede, a cabeça foi encontrada e envolvida em um lenço. Ao juntar - se as duas partes da imagem, esta teria ficado tão pesada que impossibilitaria a saída do barco do local. Nos instantes seguintes, uma quantidade enorme de peixes invadiria o barco, fazendo com que precisassem retornar às pressas ao porto. Este seria o primeiro milagre de Aparecida.

Nos primeiros 15 anos, a imagem ficou na casa de Filipe Pedroso, reunindo sempre pessoas da região, que descreviam incontáveis milagres atribuídos à misteriosa santa negra. Sendo, enfim, por volta de 1734, construída a primeira capela, pelo vigário local. Assim, a fama da santa crescia, e em 06 de Novembro de 1888, a Princesa Isabel, em retribuição por graça alcançada, presenteou a imagem com um rico manto azul e uma luxuosa corôa de ouro, cravejada de rubis e diamantes. 

Em 1930, a imagem foi oficialmente proclamada a santa padroeira do Brasil. 

À Nossa Senhora Aparecida são atribuídos inúmeros milagres, quase todos ligados à cura e libertação, estando a imagem sempre presente entre muitos ciganos brasileiros.

Não é muito difícil associar a imagem de Nossa Senhora Aparecida à imagem de Santa Sara Kali, a tez negra, o manto azul, a ligação aos milagres de cura e fertilidade. A imagem de Aparecida data do início do século XVI, exatamente a mesma época em que os ciganos foram massivamente deportados do solo português, sendo brutalmente obrigados a deixar de lado suas crenças, e , certamente, o culto à Santa Sara Kali, figura marcante na tradição cigana. O fato dos primeiros ciganos a pisar solo brasileiro serem calons, explicaria o fato de sua referência religiosa ser o de Aparecida e não o de Sara, uma vez que seria preferível adotar uma imagem parecida e aceita pelos portugueses a não ter proteção alguma. No caso dos roms, Sara ainda se faria presente naturalmente, pois estes teriam chegado em um contexto totalmente diferenciado, junto às imigrações europeias.  Daí então o motivo da devoção dos calons brasileiros à Nossa Senhora Aparecida. Tal qual a dos ciganos mexicanos pela Virgem de Guadalupe, que também possui manto azul. 


                                



É de comum acordo que o ser humano é capaz de se adaptar a toda e qualquer situação, principalmente se sua existência depende disso. Nosso povo é expert em adaptações, prova disto é o modo como agregamos facilmente os costumes locais das regiões por onde andamos. Nós, ciganos brasileiros somos agraciados por possuirmos duas santas benditas à quem podemos recorrer, Santa Sara Kali e Nossa Senhora da Conceição de Aparecida. 

Esta é minha singela homenagem, minha Mãe! Viva Nossa Senhora Aparecida! Salve Santa Sara! Feliz dia de Nossa Senhora Aparecida à todos!

                                   


terça-feira, 27 de setembro de 2016

Então seguimos!




Continuemos a partir daqui a tentar explicar um pouco a trajetória de nosso povo através da dança. Recapitulando que saímos da Índia, aqui já tendo sido mencionadas as danças de origem indiana  que ainda são praticadas na região, banjara, kalbelia e tera taal.

Sigamos então com nossa longa caminhada através do mundo e da dança cigana. Entretanto, para entendermos melhor este processo de 'mesclagens' que a dança cigana passa a sofrer, necessitamos conhecer alguns conceitos mais aprofundados acerca do estudo acadêmico da dança,que nos ajudam a perceber e entender o motivo de nossa dança conservar a mesma raiz, independente do estilo ou local onde for praticada.

Vamos ao primeiro conceito que é o de Memória Corporal Afetiva. Tive contato com este conceito quando na faculdade, trazido a mim por sua idealizadora, a pesquisadora-bailarina-intérprete Rosângela Colares. O conceito é bastante simples de ser entendido e absorvido, nos trazendo à reflexão que cada ser humano traz suas memórias em seu corpo, mesmo que inconscientemente. Vamos entender melhor...


                                                                   





Desde o momento de nossa concepção, ainda no ventre materno, sentimos e assimilamos todo o mundo exterior. Vozes, sons, e, até mesmo, movimentos. Imagine então, uma mãe cigana que canta suas canções tradicionais típicas, recebe todo o cuidado que uma cigana recebe em seu período gestacional e, é claro, dança alegremente nas festividades das quais participa. O feto, no interior do ventre de sua mãe ouvirá e sentirá tudo o que se passa lá fora através dos hormônios e sensações transmitidas por sua mãe. Seu pequeno corpo, sua pequena mente guardarão aquelas sensações para que, simplesmente, recorde das mesmas quando for estimulado em seu cotidiano. Assim acabamos por ouvir que  a criança tem o jeito de dançar da mãe, do pai, da tia, do avô, etc, que se mescla a sua personalidade ganhando novas formas. Ao longo de sua vida, a criança permanecerá em contato, cada vez mais direto, com influências de seu círculo familiar, construindo-se assim o estilo de dança próprio de sua família, impregnado por sua memória corporal afetiva.


                                   
 



O segundo conceito é o de Empatia Muscular. Apresentado a mim por Márcia Dib, através de Nilza Leão. Empatia, segundo o dicionário, é a capacidade emocional de compreender um objeto, ou ainda, a capacidade de projetar a personalidade de alguém em um objeto, de forma que este pareça impregnado por ela. Pode ser ainda a capacidade de sentir o que o outro sentiria. Neste caso, nos prenderemos à personalidade projetada em um objeto. Agora vamos entender...



                                



O conceito de empatia muscular está presente em pessoas, animais e paisagens. Retornando à infância, desde pássaros a seres humanos absorvem as sensações do meio em que vivem, adaptando suas necessidades ao seu corpo. Vamos pegar o exemplo do pássaro... O pássaro necessita voar, quanto mais alto o seu ninho, quanto mais dificultoso for o seu local de acesso, melhor e mais firme será seu voo. Isto acontece pelo fato de sua musculatura perceber, através do constante exercício, a força e o movimento necessário para que ele possa voar com segurança. Logo, um canário jamais voará como uma águia careca americana, pois as influências que cada um recebeu e desenvolveu em sua musculatura são completamente diferentes. Cada um traduziu para o seu corpo as necessidades do meio em que vive. Isto é empatia muscular.


                                       




Agora vamos traduzir isto para a dança. 



                               



 Vamos observar um pouco o cotidiano das ghawazee e de outras ciganas nômades que precisam buscar água em lugares distantes diariamente. Este processo, normalmente, começa ainda muito cedo, uma vez que uma mulher a mais, mesmo que criança, significa um jarro a mais, que por sua vez significa mais água para a tribo. Sua musculatura deverá se adaptar a vários fatores. A melhor maneira para se abaixar, a força necessária para puxar o jarro cheio de dentro da água, a força necessária para erguer o jarro cheio do precioso líquido sem derramar uma única gota, o equilíbrio para manter o jarro no alto da cabeça, aliado à força muscular para suportar o peso, e, por fim, a resistência muscular do corpo todo para retornar ao acampamento com o jarro cheio de água no alto da cabeça. Ao longo de sua existência, seu corpo estará cada vez mais adaptado ao movimento cotidiano, traduzido por seu tônus muscular. Logo, uma dançarina que não possua este contato, dificilmente carregará um jarro, durante uma dança, da mesma maneira que uma beduína tradicional, pois o corpo da nômade e da bailarina possuem registros diferenciados em seus corpos. Posto assim, o ideal ao se praticar uma dança típica, seria tentar vivenciar um pouco do cotidiano tradicional. Não estou dizendo que vamos para o meio do deserto buscar água debaixo do sol escaldante para saber como é, longe disso, mas se for para apresentar algo típico, por exemplo com o jarro, podemos, pelo menos, ensaiar com o mesmo cheio de água, na tentativa de tornar o gestual da dança mais fiel o possível. Experimente, por exemplo, ensaiar um ghawazee em um terreno arenoso. A diferença para uma superfície lisa é gritante. A execução de certos passos torna-se até mais difícil.


                                                





Dias atrás, tive a oportunidade de estudar um pouco de dança cigana de estilo espanhol. Como já mencionado, sou de família moura, tendo como vivência comum, as danças originárias do Oriente Médio e Marrocos. Isto fez com que eu encontrasse sérias dificuldades corporais para endurecer meu gestual, pois a empatia muscular impregnada em meu corpo o fez acostumar-se ao gestual leve das mesmas, ao contrário do gestual hispânico. Entretanto, ao seguirmos para movimentos de busto, ombros e saias, a dificuldade desapareceu, uma vez que estes estão presentes em, basicamente, todos os estilos de dança cigana.

A partir destes dois conceitos entendemos, então, que nossos corpos e mentes, trazem impregnados um gestual próprio e comum, adaptando e traduzindo para nossa dança o gestual dos locais por onde passamos e isto faz com que, não importa de onde venha ou onde esteja, nossa dança seja reconhecida como dança cigana!



                                      



                                      






sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Os Ciganos e a Dança



Nossa relação com a dança e algo muito intimo e magico.Dançamos do nascimento ao luto. Dançamos para festejar e como uma forma de resistência,pois a dança também traz nossa historia,nossa identidade. Nossa dança e uma forma de preservação de nossa cultura,assim como nossa língua e nossas tradições familiares. Faz parte de nos.

Entretanto,engana-se quem pensa que todo cigano dança. Não! Nem todos dançam,nem todos cantam,nem todos leem a sorte e nem todos moram em tendas, e isso não faz de ninguém menos cigano ou mais cigano,pois o ser cigano vai muito alem disso.

Costumo dizer que ser cigano e que nem ser judeu. Temos línguas,costumes,identidades culturais e bandeira diferentes e os seguimos onde quer que estejamos. Sabemos o que somos e ponto.

Ate porque,muitos de nossos antepassados foram obrigados a esconder suas origens,fazendo com que muitos descendentes atuais,sequer sonhem que tem parentesco cigano. Este,somente identificável pelos sobrenomes tradicionais,como Ferreira, Costa, Nunes, Pinheiro, Campos, Oliveira, Santana,etc. 

Mas voltando a dança...rsrs. Como já expliquei no post anterior,nosso povo saiu da Índia e espalhou-se pelo mundo,passando e fixando-se por diversas regiões, adaptando-se a absorvendo os costumes dos locais por onde passou,mesclando-os a sua cultura original. Isto reflete-se nas roupas,língua,musica, culinária e,também,na dança.

Nossa dança possui,e claro, traços identificáveis em qualquer formato, seja ela turca,persa,romena,espanhola,balcânica ou brasileira. Isto fara com que,onde quer que se veja,esta seja reconhecida como dança cigana. 

kalbelia;cigana do Rajastão.



Cigana Calin em acampamento no Brasil.



Ao longo das postagens, todos poderão identificar estes traços,como movimentos das mãos, das saias, dos ombros,de giros,de quadris,etc. Me preocupo muito com o termo 'dança cigana' ou 'dança artística', pois não existe uma homogeneidade em nossa dança,apesar de semelhanças. Recordo-me de minha orientadora,uma antropóloga,no dia em que disse a ela que faria meu TCC sobre dança cigana,ao que esta me perguntou sobre qual dança cigana eu falaria...rsrs. Realmente, o termo dança cigana e algo muito abrangente, alem de nada especifico,o mais adequado seria falarmos danças ciganas dos balcãs,danças ciganas do leste europeu, danças ciganas de estilo turco,ou sendo ainda mais especifico, kalbelia(Rajastão
),manea (balcãs),karsilama(Turquia),kawlya(Iraque).

Então,pensando desta maneira,uma dança cigana artística seria,na verdade,uma adaptação artística de algum formato de dança cigana. Algo criado especialmente para o palco, para a cena artística. Nada contra, não estou criticando, mas,pela logica, e fazer exatamente o que se fez com a dança do ventre em Hollywood, criando-se o mito da dança dos sete véus. Em outras palavras, corre-se o risco da perda da identidade cigana na dança. Pensemos nisso!


Então,vamos começar pelo começo...rsrs. Vamos para a Índia,o berço do povo cigano,onde há vários formatos de dança cigana,formatos estes que seriam,segundo alguns historiadores, as origens de nossa dança.


Banjara



Banjara é uma palavra derivada do sânscrito, que significa "os que se movem na floresta", isto devido ao fato dos Banjara serem,historicamente, coletores de suprimentos nas florestas,como raízes, folhas e frutos. Os Banjara estão entre as castas mais baixas da Índia e são uma das muitas tribos ciganas que habitam o pais e são chamados de "os ciganos da Índia", assim como a casta dos Dombas.
A dança banjara dividi-se em tradicional e artística (para o palco
). Na dança tradicional não há a necessidade de musica,as ,mulheres dançam com o som de pequenos címbalos de metal, alem do som de suas pulseiras de osso e suas tornozeleiras de prata,que elas jamais tiram. As Banjaras,na verdade estão sempre prontas para dançar,sendo suas vestimentas tipicas,repletas de adereços,as vestimentas tipicas para a dança.


Na dança Banjara artística,ha toda uma contextualização musical que não ocorre na tradicional, assim como na tradicional ha uma grande variedade de adereços e cores,assim como na Banjara tradicional,entretanto,a tradicional e,na verdade,uma dança de cunho espiritual de exaltação ao amor e a beleza. No palco, a dança torna-se artística,seguindo portanto o ritmo musical de maneira precisa,podendo a dança inclusive ser executada por apenas uma dançarina. A presença das pulseiras de osso aqui não e tão frequente,porem as cores das vestimentas permanecem fieis,sendo a saia de algodão nas cores preta,vermelha e branca,bordada com pequenos pedaços de vidro (gage ha), juntamente a blusa (chole) e ao véu (rodni),que deve ser grande o suficiente para que o corpo permanece quase totalmente coberto durente a execução da dança.

A seguir,dois videos com execuções das danças Banjara tradicional e artística,em sequencia. 



                                                        
                                     



                                        



                                              Kalbelia





Kalbelia ou Sapera,trata-se de um tipo de dança cigana originaria da Índia,mais precisamente do Rajhastão, região localizada no noroeste indiano. Kalbelia e o nome dado tanto a tribo quanto a dança praticada. Kalbelia,em sua tradução literal do sânscrito,significa "a que domina de preto",certamente pela predominância da cor preta em sua roupas. Sapera,do hindi,serpente. Estas duas alusões nos traduzem a magia e o domínio da dança kalbelia em uma dança que,em seus movimentos,transfigura os movimentos das serpentes. O serpenteado desta dança,vem da tradição desta tribo em coletar serpentes para a retirada e venda de seu veneno,fazendo com que o grupo se tornasse conhecido pelo encantamento das serpentes.


                                       





Todos os movimentos e adereçagem pertinentes a esta dança trazem alusão as serpentes. Movimentos de véu e cabeça,tornozeleiras,mudras (símbolos sagrados feitos nas mãos),tramas das roupas e movimentos corporais,traduzem a historia deste grupo de ciganos,sendo o auge de sua execução o movimento conhecido como "Os Olhos da Serpente",onde a dançarina enverga-se para traz em um "super" cambret,pegando,com seus olhos, moedas no chão, assemelhando-se assim seus olhos aos da serpente.



Hoje, os homens da tribo sobrevivem capturando serpentes que entram em algumas casas,ganhando pouquíssimo dinheiro e as mulheres pedem esmolas e executam suas danças nas ruas.

Abaixo,um vídeo extraído do Asian Music Circuit ( Circuito de Musicas da Asia), com dançarina e músicos de comunidade kalbelia tradicional.









                                    

                                             Tera Taal
                                              




Tera taal ou Teratali e uma dança praticada por ciganos de uma tribo chamada Kamada,de encantadores de serpentes,na região do Rajhastão,por vezes confundida com a dança Bhavai,uma dança tradicional da mesma região,que consiste em seu executor equilibrar o maior numero possível de potenciômetros (um tipo de vasos de cerâmica pintada),enquanto dança sobre vidro. O termo significa 13 batidas, sendo a dança originalmente utilizada tanto para entretenimento de turistas quanto para devoção nos templos dedicados a Baba Rumdev, no templo de Runesha.


A dança Tera taal é executada com a utilização dos Mangiras ( o mais antigo instrumento utilizado na Índia,que consiste em pequenos címbalos de metal presos ao corpo por fios de couro ou cobre), presos aos braços e pernas. Na dança as mulheres giram seus corpos em movimentos rítmicos rápidos e precisos e por vezes,acrescentam facas ou espadas presas na boca,como um elemento de risco na dança. 

Hoje em dia,esta dança e praticada,quase que exclusivamente,para fins artísticos,como atração turística.


                                    



                                      

                                    



terça-feira, 30 de agosto de 2016

LUNGO DROM

kalbelia

Nossa historia começa ha mais de dois mil anos atras,na Índia. Segundo os mais renomados antropólogos,estudiosos e, e claro,ciganos,nosso povo originou-se na Índia, sendo um grupo muitos discriminado que nunca conseguia seu local de respeito na sociedade hindu (algo muito próximo aos dalits) . Em dado momento,fomos então expulsos das cidades indianas,sendo forçados a vagar,como nômades,através do deserto. Inicia-se ai,nossa saga.


Ghawazee

Alguns afirmam que ciganos da região de Punjab teriam sido feito escravos por guerreiros invasores muçulmanos,o que contribuiu para a diáspora cigana.  Ha registros de que durante as invasões turco-persas,50 mil prisioneiros foram feitos nas regiões de Punjab e  Sindh. Provavelmente,aqueles que fugiram,não desejaram voltar a Índia,mas sim,viajar em busca de melhores terras e condições de vida. Isto teria ocorrido por volta do ano 1000,quando atravessaram  a região que hoje compreende Afeganistão,Irã,Armênia e Turquia.

A partir da chegada na Pérsia,os ciganos dividiram-se em dois grupos.O primeiro seguiu para o oeste e alcançou a Europa através da Grécia,o segundo dirigiu-se para o sul,alcançando regiões como Síria,Egito e Palestina.

Ciganos sempre sofreram com o preconceito por onde quer que passassem,sendo inclusive o termo cigano uma derivação de uma palavra grega( atsigani) que significa 'não toque'. Este preconceito levou a uma historia dolorosa de intensas perseguições,sendo feitos escravos quase no mundo inteiro,inclusive sendo duramente marcados pelo Porrajmos,o holocausto cigano,durante o período da Alemanha nazista.

A perseguição maciça dizimou mais de meio milhão de nosso povo tão intensamente que,quando a guerra acabou,não haviam sobreviventes ciganos. 

O Porrajmos ainda e algo pouco conhecido pela maioria dos não ciganos,refletindo,mais uma vez, o descaso e discriminação para com este povo. 



Ciganos em campo de concentração






Simbolo que marcava os ciganos nos campos de concentração. A letra 'Z',significava Zigueuner.





Hoje,infelizmente,pouca coisa mudou,pois continuamos sendo vitimas de forte preconceito,vivendo a margem da sociedade em todos os países, Calons vivem no Brasil e são enterrados como indigentes por falta de documentos,pois,ao seguirem a tradição de dar a luz sob a tenda,surge a impossibilidade de um registro civil,somente reconhecido quando o parto e realizado em maternidade convencional. Vivendo o que se diz,um Brasil invisível.



Calons brasileiros


Porem,nem tudo e tristeza. O Brasil,ainda assim e o pais que melhor convive com os ciganos,tendo,inclusive, reconhecido um dia como o Dia Nacional do Cigano,no dia 24 de Maio,juntamente as comemorações do dia de Santa Sara. Ha projetos de cultura voltados direta e inteiramente para os ciganos,como o Premio Culturas Ciganas e o projeto Tenda-escola,que leva educação para crianças,jovens e adultos para os acampamentos. Ha um cenário de interação cultural rico e harmonioso,e,mesmo em meio a velhos preconceitos,estamos cada vez mais alcançando espaço e respeito.
Cigana do Rajastão

Possuímos nossos dons,nossas fogueiras,que nos aquecem tanto quanto os abraços carinhosos de nossos irmãos,agitamos nossa bandeira e dançamos esperançosos,pois como o compasso de nossas melodias nos faz lembrar,apos a tristeza sempre ha a alegria de um novo dia!

Opre Roma!!!


Bandeira Cigana