A Relação entre Santa Sara Kali e Nossa Senhora da Conceição de Aparecida.
Santa Sara Kali
É do conhecimento de todos os apreciadores da cultura cigana, a devoção de nosso povo por Santa Sara Kali, a idolatrada imagem negra cuja imagem localiza-se na cripta da pequena igreja de Saint-Michel na cidade francesa de Saint - Maries - de - La - Mer. Porém, nem todos conhecem a relação dos ciganos brasileiros, principalmente calons, com Nossa Senhora Aparecida, a padroeira católica do Brasil.
Nossa Senhora Aparecida
É muito comum encontrarmos nos acampamentos calons uma imagem da padroeira brasileira, sendo esta venerada, comemorada e respeitada, tanto quanto a tradicional imagem de Santa Sara Kali. Aliás, já estive presente em acampamentos em que se fazia presente a imagem católica de Nossa Senhora Aparecida, porém, nada havia que lembrasse a tradicional imagem de Santa Sara Kali, a padroeira mundial dos ciganos.
Durante esta semana de comemorações
à Nossa Senhora Aparecida, falarei aqui de ambas, como singela homenagem, trazendo a desconhecida ainda por muitos, porém íntima, relação entre as duas.
à Nossa Senhora Aparecida, falarei aqui de ambas, como singela homenagem, trazendo a desconhecida ainda por muitos, porém íntima, relação entre as duas.
Vamos, portanto, por ordem de culto, entender esta relação.
Primeiramente, Santa Sara Kali.
Assim como nossas saias, a história de nosso povo, nossa língua, etc, também a história do culto à Santa Sara Kali é composta por retalhos, que, por lógica e aceitação, construíram o que hoje aceitamos como história 'oficial'. Lembro aqui que busco elucidar sempre academicamente, sem é claro, esquecer minhas origens, logo, em termos acadêmicos, jamais poderemos mencionar histórias não documentadas como oficiais e sim como teóricas, daí o motivo do sinal de aspas.
Tal como tudo o que nos envolve, as origens de Santa Sara são complexas. Aqui, vamos entender, passo a passo e palavra por palavra, de onde viria Santa Sara Kali.
De acordo com inúmeros relatos, inclusive familiares, o culto a Deusa Kali, ainda na Índia, teria acompanhado os ciganos em sua diáspora. Kali, do sânscrito, significa negra, palavra esta que, em nossos dialetos possui, exatamente, o mesmo significado e semântica.
Kali ( literalmente 'A Negra'), é uma das Deusas mais respeitadas no panteão hindu, sendo considerada uma manifestação da Deusa Parvati, a esposa de Shiva, o Deus da criação, sendo Kali representada manchada de sangue, com cobras e um colar de crânios.
Altar de Kali
Kali, segundo os Vedas, seria uma face de Shiva, em uma forma implacável ceifadora, simbolizando, assim, o interminável ciclo da vida. Sua imagem, normalmente possui pele negra ou escura, usando serpentes sobre o corpo ao invés de roupas, com um colar de crânios e de pé sobre o corpo de Shiva, representando a necessidade da morte para a renovação do ciclo da vida. Porém, Kali não é considerada uma Deusa má, mas sim a libertadora indispensável para os ciclos. Seus devotos são, acredita-se, recompensados com poderes paranormais como vidência, cura e domínio sobre serpentes, tendo uma morte livre de sofrimentos. Kali, apesar de sua aparência malvada, é considerada como uma mãe que alivia a dor e sofrimento nos ciclos reencarnatórios, dando também a vida. Sua imagem é muito presente entre os ciganos kalbelia e demais tribos que professam o hinduísmo. Certamente, esta Deusa acompanhou o povo para sua proteção, como já mencionado.
Entendemos, a raiz hindu do culto à Santa. Vamos agora a seu primeiro nome, Sara.
Sara é um nome hebraico, historicamente associados a mulheres de destaque na sociedade hebreia, também traduzido como 'princesa' ou 'senhora'. Segundo alguns autores, incluindo Dan Brown, em suas obras como Holy Blood, Holy Grail e , mesmo no famoso código Da Vinci, Sara seria, na verdade, a filha de Jesus e Maria Madalena, sendo ela o legado de Jesus, o Santo Graal que continha a cura, daí o motivo dos ciganos serem agraciados com poderes de cura.
Lendas, contam em algumas versões que ela seria serva de Maria Madalena, estando desde a infância, sempre perto dela, outras que seria serva e parteira auxiliar de Maria, a mãe de Jesus, tendo. inclusive auxiliado em seu parto, fazendo com que ele tivesse carinho especial pela serva. E há ainda a mais contada, de que Sara seria uma escrava cigana de José de Arimatéia, o suposto tutor de Jesus no período em que passou recluso, a partir dos 13 anos.
A lenda de Santa Sara Kali, nos conta que Sara, juntamente a Maria Jacobina, a irmã de Maria mãe de Jesus, Maria Salomé, mãe dos apóstolos Tiago e João, Marta, Lázaro e Maxíminio, após a crucificação, teriam sido lançados ao mar em uma barco sem remos ou provisões. A alternativa por jogá-los ao mar teria surgido por medo de matá-los diretamente, após os fenômenos ocorridos com a morte de Jesus. Desesperadas, as Marias puseram-se a chorar, Sara então retirou o véu que encobria seus cabelos ( mais uma pista sobre a descendência hebreia, uma vez que somente as hebreias cobriam a cabeça naquela região ), chamando por Kristesko ( Jesus Cristo ), prometendo que se todos se salvassem seria escrava de Jesus, jamais andando com a cabeça descoberta, em sinal de respeito. Milagrosamente, vencendo todas as adversidades, a barca sem rumo alcançou terra firme aportando com segurança em Petit-Rhône, hoje Saint-Maries-de-La-Mer ( Santas Marias do Mar ) . Sara teria cumprido sua promessa, mantendo sua cabeça coberta até o último de seus dias na terra, sua história de milagres a tornou padroeira dos ciganos, sendo festejada, geralmente, entre os dias 24 e 25 de Maio.
De acordo com o livro oráculo Lilá Romai, de Mirian Stanescon, provavelmente a tradição das mulheres ciganas casadas terem o dikló ( lenço ), como a peça mais importante de seu vestuário tradicional teria vindo daí. Sara é cultuada trazendo prosperidade, saúde e fertilidade, sendo muito comum sua ajuda às ciganas que não conseguem engravidar, que lhe agradecem sempre com um belo dikló. A imagem de Santa Sara, em Saint-Marie-de-La-Mer é cercada por incontáveis e lindos lenços de ciganas que cumpriram sua oferta pela graça alcançada.
Sara é considerada uma santa de culto local, pois jamais passou pelo processo de canonização oficial, está ligada ao culto às virgens negras da Idade Média. Não se conhece a razão exata que fez com que nosso povo a abracasse como padroeira, mas o fato é que Sara trouxe o cristianismo definitivamente para os ciganos. Sendo a figura mais amada e cultuada por todos.
Talvez o fato de possuir a tez escura ( kali ), associado ao manto azul ( a segundo cor da Deusa ), tenha contribuído para a ligação a deusa hindu, que, por sinal, está ligada a benefícios muito próximos, como fertilidade, vida e cura. O fato é que, invariavelmente, Santa Sara Kali é uma santa cigana.
Até aí, entendemos um pouco sobre o culto à Santa Sara e suas origens, agora vamos até o Brasil em busca da relação de nosso povo com Nossa Senhora Aparecida.
Na imagem acima, temos a foto de um acampamento calon, onde ao fundo pode-se ver uma imagem de Nossa Senhora Aparecida.
Primeiramente, vamos a história dos ciganos no Brasil, seguido de um breviário a respeito do culto a Nossa Senhora Aparecida.
Vamos à entrada dos ciganos na península Ibérica, que resultou em sua expensão pelos territórios de França, Espanha, Itália, Alemanha, Portugal e sua consequente chegada ao Brasil. Não existe um consenso a respeito da entrada dos ciganos na península Ibérica, mais uma vez, o que temos são teorias de fontes incertas e de difícil acesso, entretanto teoricamente, há origens mais aceitáveis dados retalhos históricos encontrados em documentos datados de 1415.
A primeira teoria diz que, estando ao norte da África, teriam atravessado o estreito de Gibraltar para se reencontrar na França, com a rota migratória do norte. Assim se dividiriam os ciganos do norte, entrando por Perpignan, os do sul ( tingitanos, provenientes da região do Tanger, que teria dado origem ao termo tsigani ), e os do leste ( grecianos ), tendo estes últimos penetrado pelo mediterrâneo, muito provavelmente devido
à queda de Constantinopla, por volta de 1480. A melhor documentação que se tem conhecimento é a respeito da entrada do norte, com um documento conservado datado de 1415, onde, nele, Alfonso o Magnânimo, concede salvo - conduto a um cigano chamado Tomás Sabba, a Santiago de Compostela. O mesmo monarca, concederia, em 1425, carta de passagem a outro chefe cigano, juntamente a seu povo, ordenando que fossem bem tratados. Abaixo, transcrição retirada de fontes acadêmicas.
à queda de Constantinopla, por volta de 1480. A melhor documentação que se tem conhecimento é a respeito da entrada do norte, com um documento conservado datado de 1415, onde, nele, Alfonso o Magnânimo, concede salvo - conduto a um cigano chamado Tomás Sabba, a Santiago de Compostela. O mesmo monarca, concederia, em 1425, carta de passagem a outro chefe cigano, juntamente a seu povo, ordenando que fossem bem tratados. Abaixo, transcrição retirada de fontes acadêmicas.
“ | …Como nosso amado e devoto dom João do Egito Menor… entende que deve passar por algumas partes de nossos reinos e terras, e queremos que seja bem tratado e acolhido… sob pena de nossa ira e indignação… o mencionado dom João do Egito e os que com ele irão e o acompanharão, com todas suas cavalgaduras, roupas, bens, ouro, prata, alforjas e quaisquer outras coisas que levem consigo, sejam deixado ir, estar e passar por qualquer cidade, vila, lugar e outras partes de nosso senhorio a salvo e com segurança… e dando àqueles passagem segura e sendo conduzidos quando o mencionado dom João o requeira através do presente salvo-conduto nosso… Entregue em Saragoça com nosso selo em dia doze de janeiro do ano de nascimento de nosso Senhor 1425. Rey Alfonso. | ” |
Nesses anos, houveram inúmeros salvos - condutos concedidos à nobres chefes ciganos, e, segundo pesquisadoras como Teresa San Român e Helena Sânchez, desde o número de ciganos habitantes da península, a forma como se deslocavam seguindo sempre as mesmas rotas, o estreito laço familiar presente até hoje entre os ciganos ibéricos denotando que pertencem todos a uma mesma origem nuclear, bem como a estratégia de sobrevivência da época em apresentar - se como peregrino cristão ( mouros ou não ), estes indutos contribuíram para a firme amálgama cigana presente na cultura ibérica, que resultou na apropriação dos ciganos como patrimônio espanhol.
Ao final do século XVI iniciou - se o ciclo de intensas perseguições e os ciganos não puderam mais andar livremente, nem ter acordos com nobres influentes. Ao invés disso, aquele que possuíssem bens os teriam confiscados e os que não fossem mortos ou queimados eram massivamente vendidos como escravos, havendo anúncios de ciganos à venda livremente por toda a Europa. Como no anúncio da época de ciganos à venda. O anúncio diz é datado de 8 de Maio de 1852 e anuncia a venda de 18 homens, 10 meninos, 7 mulheres e 3 meninas, todos em ' boas condições '.
A chegada dos ciganos ao Brasil
Os primeiros ciganos a chegar no Brasil foram os do clã Calon, através de João Torres e sua família. Ao contrário dos ciganos de origem Rom, que chegaram ao Brasil dentro do contexto da Europa nos séculos XIX e XX, os calons vieram ainda no século XVI, banidos de Portugal. Isto está documentado por decreto assinado por Don Sebastião em seu conhecido alvará, declarando em 1574, o degredo do cigano João Torres e sua família inteira para o Brasil ( PIERONI, 2000 ). Durante todos os anos seguintes do Brasil colonial, centenas de ciganos foram deportados de Portugal para o solo brasileiro, sendo embarcados grupos inteiros a mando do rei Dom João V.
O banimento não era o ponto final para a degradação, sendo os ciganos ainda proibidos de ostentar quaisquer traços referentes a sua identidade étnica, como vestuário, língua, sortilégios e, até mesmo, religiosidade.
Os locais escolhidos pela coroa portuguesa para o degredo foram específicos, sendo eles, Ceará e Maranhão, em uma tentativa de que estes ocupassem áreas intensamente ocupadas por povos indígenas, longe dos centros culturais como Rio de Janeiro e Salvador. Vários estudiosos apontam que ciganos eram vistos como ' frutos de deportação indesejáveis ' , igualados aos piores tipo de criminosos banidos para a colônia.
Escrava cigana
Nossa Senhora Aparecida
Nossa Senhora da Conceição de Aparecida, Nossa Senhora Aparecida das Águas ou, como é mais comumente chamada Nossa Senhora Aparecida, é a padroeira do Brasil, sendo a santa católica mais cultuada em todo o território nacional. A data oficial de culto, dentro do calendário brasileiro da - se no dia 12 de Outubro, ocasião em que fiéis do
Brasil e do mundo inteiro vão em peregrinação até a cidade de Aparecida, onde localiza - se a basílica de mesmo nome da santa, em São Paulo.
Existem duas fontes sobre o achado da imagem, encontrados no arquivo da cúria metropolitana de Aparecida, datando antes de 1743, e outro na Companhia de Jesus, em Roma, com histórias registradas pelos padres José Alves Vilela, em 1743 e João de Morais e Aguiar, datado de 1757. Amos encontram - se no Primeiro Livro de Tombo da Paróquia de Santo Antônio de Guaratinguetá.
Segundo a lenda, durante o início da segunda quinzena de Outubro, em uma passagem do Conde de Assumar por Guaratinguetá, rumo a Vila Rica, os moradores da região, movidos pela nobreza local, ofereceram uma festividade ao ilustre visitante, onde, mesmo sem ser época de peixes na região, os pescadores deveriam trazer peixes para o deguste do conde.
Temerosos, os pescadores, Domingos Garcia, João Alves e Filipe Pedroso rezaram a Virgem Maria, a espera de que a santa pudesse operar um milagre. Após várias tentativas, acabaram por descer um pouco mais o rio, chegando ao porto Itaguaçu. Já quase desistentes, João Alves jogou a rede pela última vez, mas, desta vez, a rede não voltaria vazia. Em vez de peixes, na rede havia uma imagem de terracota da Virgem Maria, sem a cabeça. Ao lançar novamente a rede, a cabeça foi encontrada e envolvida em um lenço. Ao juntar - se as duas partes da imagem, esta teria ficado tão pesada que impossibilitaria a saída do barco do local. Nos instantes seguintes, uma quantidade enorme de peixes invadiria o barco, fazendo com que precisassem retornar às pressas ao porto. Este seria o primeiro milagre de Aparecida.
Nos primeiros 15 anos, a imagem ficou na casa de Filipe Pedroso, reunindo sempre pessoas da região, que descreviam incontáveis milagres atribuídos à misteriosa santa negra. Sendo, enfim, por volta de 1734, construída a primeira capela, pelo vigário local. Assim, a fama da santa crescia, e em 06 de Novembro de 1888, a Princesa Isabel, em retribuição por graça alcançada, presenteou a imagem com um rico manto azul e uma luxuosa corôa de ouro, cravejada de rubis e diamantes.
Em 1930, a imagem foi oficialmente proclamada a santa padroeira do Brasil.
À Nossa Senhora Aparecida são atribuídos inúmeros milagres, quase todos ligados à cura e libertação, estando a imagem sempre presente entre muitos ciganos brasileiros.
Não é muito difícil associar a imagem de Nossa Senhora Aparecida à imagem de Santa Sara Kali, a tez negra, o manto azul, a ligação aos milagres de cura e fertilidade. A imagem de Aparecida data do início do século XVI, exatamente a mesma época em que os ciganos foram massivamente deportados do solo português, sendo brutalmente obrigados a deixar de lado suas crenças, e , certamente, o culto à Santa Sara Kali, figura marcante na tradição cigana. O fato dos primeiros ciganos a pisar solo brasileiro serem calons, explicaria o fato de sua referência religiosa ser o de Aparecida e não o de Sara, uma vez que seria preferível adotar uma imagem parecida e aceita pelos portugueses a não ter proteção alguma. No caso dos roms, Sara ainda se faria presente naturalmente, pois estes teriam chegado em um contexto totalmente diferenciado, junto às imigrações europeias. Daí então o motivo da devoção dos calons brasileiros à Nossa Senhora Aparecida. Tal qual a dos ciganos mexicanos pela Virgem de Guadalupe, que também possui manto azul.
É de comum acordo que o ser humano é capaz de se adaptar a toda e qualquer situação, principalmente se sua existência depende disso. Nosso povo é expert em adaptações, prova disto é o modo como agregamos facilmente os costumes locais das regiões por onde andamos. Nós, ciganos brasileiros somos agraciados por possuirmos duas santas benditas à quem podemos recorrer, Santa Sara Kali e Nossa Senhora da Conceição de Aparecida.
Esta é minha singela homenagem, minha Mãe! Viva Nossa Senhora Aparecida! Salve Santa Sara! Feliz dia de Nossa Senhora Aparecida à todos!
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